segunda-feira, 14 de outubro de 2013

17 - Gabriel - O Consolador.

Meu peito queimava, incinerava-se junto ao velho ônibus.
Encarcerado, eu esmurrava em vão as paredes da minha cela. Meu punho sangrava, mas a dor não me era sensível. Doía em meu peito algo maior.
Se eu estivesse morto como ela, a dor não me seria sensível, mas um dos guardas me tomou tudo quanto pudesse me ferir. Estava preso não somente ali, estava preso em minha vida.
– Você é um guerreiro – ela me disse uma vez. – Você é como o principezinho daquele livro que leu para mim. Ele era loiro, claro, e você não. Mas isso não importa. Você para mim é o pequeno príncipe.
Na história o principezinho morre, o que me desconsolava, pois quem morrera fora ela.
Esmurrei ainda mais a parede, e com os punhos sangrando, não queria parar.
Mas eu fui obrigado a parar.
Meus gemidos me interromperam, meu arfar intenso me interrompeu, o frio me interrompeu.
Era inútil descontar uma dor numa parede dura e fria, era inútil, pois além de fato, estava consumado. A escuridão lá longe me dizia a verdade, a fumaça por sobre as árvores me mostrava a verdade. E o cruel silêncio, era ele quem sussurrava aos meus ouvidos a macabra verdade. 
Eu abafava tudo isso com as lembranças que eu tinha. Povoava minha mente as lembranças da criança que ela era. Gabriele. Vivia agora somente em minha memória.

Tiago chorava. Eu me lembrava bem daquele dia, daquele momento em que o encontrei com lágrimas nos olhos, retendo-as com vergonha, mas em seu interior clamando por ajuda.
Ele chorava, numa das tardes mais nubladas em Desdém. Sentado cabisbaixo no estacionamento do único hospital da cidade. Tinha os braços cruzados por sobre o peito, e os pés estirados diante dele. Sentava-se por sobre uma baliza amarela numa das vagas.
O dia foi especialmente escolhido para o nascimento de uma garota que nem mesmo um nome possuía.
Em Desdém, adolescentes grávidas nunca foram algo novo, mas quando a filha do presidente da câmara de vereadores da cidade, anunciou para a família, beirando os 5 meses, que possuía uma criança em seu ventre, todos os sorrisos verteram-se em julgo.
Enquanto chovia, a jovem corria pelas ruas frias de Desdém. O pai a ferira, não apenas no coração. Sua face latejava, podia ainda sentir a mão do pai em contato com a pele.
Passou ela diante da Igreja Católica da cidade, queria poder adentrar e ali se afogar em seu choro, mas as portas estavam fechadas. Apenas parou e buscou olhar para algo que a ajudasse a esquecer de tal dor. Mas aquele templo em nada lhe foi útil, senão para sentir as gotas da chuva a descer por seu corpo.
Ela chorava em meio à chuva, mas suas lágrimas se misturavam às gotas de chuva, de forma que não se via se ela chorava realmente.
Seu ventre ardia como fogo, mas a dor era aplacada pela raiva e pelo medo. Estava sozinha? Não voltaria jamais para casa, mesmo que o pai a aceitasse. Mas não tinha mais para onde ir, senão para onde estava Tiago.
Não sabia onde o encontrar, por isso vagava para lugar algum.
A barriga crescia, arrependia-se de ter escondido isso por tanto tempo. Agora que todos sabiam, logo que Tiago ouviu de seus lábios a verdade, ela se arrependia ainda mais.
Estava magra, a criança talvez mal formada. Seu segredo poderia custar a vida de um alguém inocente.
Sonhos destruídos. Como prenuncio do fim ela possuía ânsias de vômitos.
A todo o momento imagens de sua infância lhe vinham à mente. Que destino se formava para ela? Devia abandonar a criança que crescia dentro dela? Já não teve na infância tribulações por demais? Se não desistisse, o que faria dali em diante?
Mas algo visivelmente presente em toda Desdém, não é só a tristeza que o ar carrega, mas também o julgo das pessoas, o olhar de julgo, os comentários que rolam de esquina em esquina. O desprezo.
Tanta amargura Tiago escondeu. Tinha medo, tanto quanto Heloisa. Ela foi negada pela família, e ele, logo que seus pais soubessem, o despojaria. Ambos com meros 15 anos. Duas vidas destruídas logo cedo.
Bastava aos dois apenas que esperassem os boatos surtirem, e os olhares tortos serem lançados por sobre os dois.
Por dois meses tudo ficou em silêncio. Juntos se instalaram num pequeno apartamento próximo aos bosques da cidade. Ele abandonou a escola, e começou a trabalhar braçalmente numa das olarias da cidade. Via-se em seu rosto a dor, mas ninguém sabia ainda o que a causava.
Heloisa prendeu-se na pequena casa. Não ia mais a escola, mas não trabalhava. Sabia-se que morava ela com um jovem, mas ninguém sabia os detalhes. Seus pais não falavam mais sobre ela, e restava apenas aos vizinhos que especulassem.
Horrendos comentários surgiram de inúmeros lábios, nenhum que dissesse de fato a verdade, nenhum que os bendissesse.
Aos sete meses não foi mais possível ocultar o que era fato.
Consola, mulher que faz jus ao seu nome, há muito fora a mãe de Heloisa, mas desde o momento que o pai a negou, Consola se viu perdida, dividida entre ambos.
Nada fere mais o coração de uma mãe, que ver a filha partindo, com um filho sendo gerado dentro de si, numa tarde fria e chuvosa. Via da janela os cabelos loiros da filha se tornando negros enquanto a chuva os molhava no dia em que partira. Isso a feria.
Conteve então ela a dor em seu peito por 2 meses, e deixou que a mesma extravagasse-se logo após, quando seu amor gritou mais alto. Não podia deixar a garota que tinha no rosto os mesmos traços que ela a mercê do mundo.
Derrubou seu cárcere quando encontrou pelas ruas, caminhando tão soturno, quanto o dia que se fazia noite, o jovem que apenas vivia, por amor à garota que o aguardava num ambiente que jamais seria chamado de lar.
Ressentida, hesitou antes de gritá-lo enquanto passava no outro lado da rua. Talvez nem mesmo soubesse o seu nome se seu marido não tivesse feito questão de repeti-lo toda noite, numa conversa que logo arrancava lágrimas de Consola.
Tiago logo sumiu de vista, mas sabia ela que ele não andava em direção ao lar, tampouco para o trabalho. Descobriria ela que ele ia mais uma vez chorar sozinho em meio às árvores que enchiam um bosque que ele mesmo nomeara como O Bosque da Solidão.
Então ela o ignorou, ignorou a ânsia de falar com ele, mas não conseguiu domesticar a vontade de ver a filha.
Apenas com o pensamento de que valeria a pena, ela chegou diante da porta que separava-a da filha, e sem nem mesmo bater, girou a maçaneta na esperança de encontrar a porta destrancada.
E quando a porta acinzentada se abriu diante dela, antes mesmo de ver a filha, destruída, seus olhos se molharam.
Ela parou antes de abrir a porta toda. Viu a filha deitada por sobre um sofá, uma televisão velha estava ligada, mas não reproduzia som algum enquanto o ícone que representava mudo decorava a imagem do telejornal das 12. Havia um ventilador ligado zunindo enquanto soprava por sobre a menina.
Consola fechou os olhos. Cada detalhe daquela casa a fazia chorar. Só de pensar que a filha vivia ali e não junto dela, o coração sangrava.
– Quem está ai? – Heloisa perguntou. Sua mãe chorava de olhos fechados, então deu um passo para trás saindo de seu campo de visão. Tinha medo de abrir os olhos e encontrar a filha diante dela. – Tiago? – sua voz veio ainda de longe.
Pensou em voltar, mas se voltasse seu coração se partiria ainda mais.
– Sou eu, – grunhiu. Entre um suspiro e um gemido… seu coração, ela não sabia onde estava.
– Quem? – Heloisa num salto se pôs de pé, não acreditando no que ouvia. Repetia para si enquanto caminhava na direção da porta, que só podia ser loucura. Mas quando seus olhos pousaram na echarpe verde que a mãe usava sempre que ia ao mercado nos dias nublados.
Manteve-se parada há poucos passos da porta, o rosto da mãe se ocultava, mas o seu ardia, era como se a dor que o pai lhe causara houvesse voltado, e a mãe estivesse ali especialmente para fazer o que não fizera da última vez. Consolá-la.
Então logo o espaço que havia entre as duas se desfez. Ao abrir a porta e ver a mãe de olhos fechados, o rosto molhado, tirou a mão que descansava pousada por sobre a barriga.
Consola só abriu os olhos quando foi envolta pela filha, de pronto a retribuir seu abraço.
Mas a mesma felicidade que ambas expressaram, não foi a mesma que quando voltaram da primeira consulta médica de Heloisa.
Tais resultados causaram medo. A criança estava mal posicionada, o cordão umbilical envolvia o pescoço da criança, correndo o risco de enforcá-la.
Era uma menina, mas Heloisa nem Consola ou mesmo Tiago puderam felicitar-se com isso.

Foi quando tal noticia veio a ser dada a Tiago que eu me fiz útil em sua história. Não o via desde seu aniversário, pouco tempo antes de ele descobrir a filha que viria a ter.
Ele corria em direção à minha casa, era tarde, o sol já havia se posto, mas ele ignorava isso. Ele adentrou no quintal da casa, e logo o deixando adentrou no bosque que se iniciava logo após.
Eu vi seus olhos fixos no vazio, como que evitando ver tudo ao seu redor. O mundo desabava por sobre ele, era obvio, não só pelos seus olhos molhados, mas também pelos seus punhos cerrados, seus passos firmes, e seu agitar de cabeça. Algo intenso o incomodava.
Eu estava como sempre, sozinho em casa, as portas fechadas, somente as janelas abertas. Meus pais haviam se mudado há menos de 4 meses, deixando-me sozinho, com uma pequena pensão mensal.
Eu vivia ainda com minha dor, mas vi que naquele momento, deveria engoli-la por maior que ela fosse para mim, de forma que pudesse ajudar quem se angustiava ainda mais que eu.
Num salto desci as escadas e peguei as chaves por sobre o armário da cozinha. Abri rapidamente as portas dos fundos, e correndo busquei alcançar Tiago.
Ele saltava a cerca quando gritei seu nome e ele se virou. Vi que ele tentava conter as lágrimas nos olhos, e corria para o bosque no anseio de ficar só e permitir que as lágrimas corressem.
Ele hesitou antes de se voltar para mim. Talvez esperava que eu não estivesse ali, ou que o chamado que ouvira, não era nada além de um eco perdido em sua mente.
– Você está bem? – Perguntei ainda longe, mas já perto o suficiente para não gritar. Minha calça enchia-se de espinhos que se soltavam da vegetação rasteira, mas eu ignorei.
– Sim, – ele respondeu sem se virar para mim. – Só queria ficar só.
– Se eu puder ajudar… – esbocei uma sugestão, mas logo me calei, ele afirmava que estava bem, e em parte, eu compreendia seu desejo de ficar só. Solidão, é o que qualquer um deseja quando um problema o assola.
– Estou bem – ele repetiu, como que frisando, não rispidamente, mas educadamente, de forma que me senti culpado por sua tristeza.
–Tiago? Eu… – Não sei de onde tirei as seguintes falas, só me lembro de ter dito. – Sei que a gente mal se conhece, sei também que não estás bem. Eu e a cidade inteira compartilhamos a ciência do seu sofrimento. – Quando me dei conta do comentário, tentei remenda-lo. – Não que isso seja ruim… Sei que você se esforça, e de longe vejo você chorar. As outras pessoas podem se fingir de cegas, mas eu não, eu o vejo. De tudo eu só quero ajudar. Não sei como mas…
– Devo escolher uma – ele logo confessou, não demonstrava a comoção que eu esperava depois da minha fala, mas vi em seus olhos como ele realmente estava. – Heloísa ou minha filha. – Entre suas falas ele escondia um soluço. De repente, vi que em seus olhos as lágrimas não mais se continham, e que de seus lábios saía em verbos a pior notícia que ele recebera. Mesmo eu não estava esperando o que ele dizia. – Heloísa está morrendo, – ele disse num gemido. Parecia querer gritar, mas tinha medo e vergonha. – Não posso perdê-las, nenhuma. Se a criança continuar dentro dela, durante o parto Heloísa morre. Vão matar minha criança.
Não me segurei mais, me aproximei de Tiago, que ainda de costas pra mim, me envolveu num abraço logo que pus minha mão sobre seu ombro. Ele estava sozinho, era essa sua situação. Todos na cidade sabiam de sua história, mas nenhum deles se dispunha para ajuda-lo. Era a triste realidade de Desdém. Para falar, milhares se levantavam, mas quando precisam estender uma mão, todos se acomodam em seus lares aparentemente felizes, e se fecham cuidando apenas da própria vida, um contrassenso, uma lástima.
Eu odiava Desdém, e podia prever que Tiago também.
Mas eu precisava dizer algo pra ele, eu tinha que consolá-lo de alguma forma. Eu me moía por isso, estava ali para ajuda-lo, mas de todas as milhares de palavras, nenhuma me passava pela mente para que eu pudesse amenizar aquela dor. Era agonizante, eu queria sussurrar que ficaria tudo bem, mas sabia no fundo que era mentira, e eu não queria mentir.
– Eu vou te ajudar. Confia em mim? – ele aquiesceu com alguns grunhidos, sua mão preocupada me apertava forte. Desfiz o abraço e o coloquei diante de mim, de forma que ele me fitasse. Mesmo querendo esconder aquelas lágrimas ele me encarou, fungava discretamente e tinha os olhos vermelhos. – Olha pra mim, – pedi quando desfiz o abraço. – Eu vou ajudar você, não importa como, o que eu puder fazer, irei fazer. Não se preocupa, você não está sozinho. Se me permitir estar com você eu vou estar. Cara, você é meu amigo, devo muito – enfatizei a palavra muito –, devo muito a você. Chegou a hora de pagar.
Eu lhe estendi a mão, ele tomou-a num aperto envolvendo o meu dedão erguido, como sempre fazíamos quando mais jovens, puxando um ao outro, e ainda segurando a mão, apertando-nos num abraço.
Eu sorri, e vi que ele tentou também, mesmo em meio às lagrimas que teimavam em descer. Eu não havia resolvido o seu problema, mas ele se felicitava ao saber que ao menos não estaria sozinho.
– Vem – o chamei. – Vem pra minha casa – o puxei com ele ainda pendurado em meu ombro. Enlacei-o de forma que ele caminhou comigo, lento, mas determinado.
Com cada passo conquistado ele melhorava sua postura. Notei que não chorava como antes.
Pessoalmente, eu odiava o choro, eu odiava pessoas chorando ao meu redor, mas Deus me presenteara com o choro, Deus levava os inconsolados até a mim, de forma que eu cumpria meu papel de consolador.
Não diferia com Tiago, era estranho vê-lo chorar, mesmo abraça-lo, mas era esse meu papel, era essa minha função no mundo.
Logo estávamos em minha casa, as paredes frias pareceram recebê-lo como se ali fosse o seu lugar. Meus pais já haviam se separado, cada um seguira para uma direção, para lados opostos. Eu não os seguira, eles não insistiram, e por mais que eu quisesse deixar Desdém, por orgulho eu fiquei ali. A casa foi registrada em cartório no meu nome, recebia uma pensão de ambos mensalmente, assim eu conseguia viver. A solidão na casa não era a mim um fantasma, ficar só não me causava medo, de fato em épocas eu odiava ficar só, foi quando tive a ideia. Claro, ainda fresca não a verbalizei, mas a trabalhei desde aquele dia.
Com Tiago ali eu não estava só, estava feliz com isso.
Ele se sentara na mesa da cozinha, as mãos tremiam depositadas sobre o tampo de granito frio.
Fui a geladeira e peguei um pouco de água de uma jarra. O copo de vidro tilintava quando ele o colocou por sobre o granito antes de beber.
– Quer que eu vá amanhã ao hospital com você? – Perguntei. Vi que um brilho surgiu em seu olhar, e mesmo antes dele responder eu já sabia de sua resposta.
– Seria… – pigarreou e continuou. – Seria ótimo.
– Eu não sei da situação, mas vou tentar ajudar. Meu pai era... – a lembrança de meu pai me assustava, então espantei o pensamento ruim e continuei. – Meu pai era médico na cidade antes de ir embora. Conheço boa parte das pessoas que trabalham lá. Posso ser útil, e no mínimo tentar mudar esse quadro. Meu pai as vezes dizia que sempre há um meio termo, não sei se isso vale dentro do hospital… mas podemos tentar acreditar.  Minha mãe por outro lado era sempre otimista, talvez por isso era sempre… – vi que a menção dos meus pais não o estava deixando bem, então deixei o comentário morrer. 
Notando o meu silenciar, ele pareceu despertar de um transe quando disse:
– Tenho que ir embora.
Ele largou o copo ainda cheio por sobre a mesa e se pôs de pé. Não sabia se devia deixa-lo ir, se devia ir com ele, ou sugerir que ele pudesse ficar. Arrisquei a última alternativa.
– Se quiser pode ficar. Está sozinho em casa certo? Eu também. – Vi que ele hesitou. – Não sei o que prefere, deve estar cansado, amanhã trabalha, certo? Saio no mesmo horário para ir à escola, não seria um problema… Além do mais eu…
Me calei quando ele me deu um abraço, um abraço sem jeito, rústico, mas que não deixava de ser um abraço.
Eu quem quis chorar. Gostava dele, mesmo que nossa amizade fosse pequena, que eu o visse raramente, mas eu gostava dele. De todos os livros que peguei com ele gostei – não sei no que isso interfere, porém… – Eu o via como um irmão, um irmão que não tive, e que aparentemente, vindo da minha mãe, jamais teria.
– Você salvou minha vida. – soltou ele se livrando do abraço.
Sem jeito enfiei as mãos nos bolsos, e endireitando o corpo tentei falar algo belo, mas nada me veio à mente. De repente, me vi falando sobre quartos, travesseiros e roupas.
– Há dois quartos lá em cima, ambos próximos do meu, daí pode escolher qualquer um. Eu, eu… Vou procurar alguns travesseiros, e se quiser tomar um banho, te empresto um par de roupas limpas. Posso pedir uma pizza mais tarde, pra substituir o jantar, ou se preferir, posso cozinhar algo. – E a medida que eu ia falando sobre aquelas coisas, um sorriso ia se pondo no rosto dele, como se a dor, os problemas, fossem se distanciando lentamente, dando uma pausa, deixando-o aliviado. Eu andava falando pelos cotovelos pela casa, e ele ria do meu jeito estranho enquanto pegava um par de sapatos na sala, ou uma toalha de banho na cozinha, e escondia num armário qualquer. Ele não dizia nada, nem assentia, nem protestava, apenas olhava, limpava vez ou outra os olhos, e me seguia timidamente pela casa. Fiquei feliz em vê-lo feliz.


Fui visitar Heloísa no dia seguinte, à pedido dele sozinho. Ele tinha medo de contar pra ela sobre a situação, então na noite anterior ele “pediu”, entre aspas, que eu o fizesse.
Fui quando ele estava no trabalho, na volta da escola. Ainda de uniforme, dei meu jeito e entrei mesmo não sendo horário de visita. A recepcionista era amiga dos meus pais, já fora em jantares lá em casa milhares de vezes, se felicitou ao me ver ali, e naturalmente me permitiu a visita.
Enquanto caminhava pelos corredores meu coração palpitava, não fazia a mínima ideia do que fazer, dizer, ou seja lá o que… Havia apenas o medo, e a certeza dentro de mim.
Entrei decidido que não contaria a ela, esperaria por Tiago, deixaria que ao menos ele estivesse presente.
Porém não deixei de visitá-la. Continuei caminhando pelo corredor determinado a vê-la. Diria que estou do lado dela, que iria ajudar.
Então eu abri a porta, lentamente, e a vi.  Olhava para janela com olhar triste, mordia os lábios tentando espantar os pensamentos que a incomodavam. Notei que ela evitava chorar. Pedi mentalmente que ela não chorasse.
– Heloísa? – Chamei.
Ela logo se virou dispersando o olhar da janela e ajeitando a postura por sobre a cama.
O quarto era pequeno, a decoração tentava dispersar o ar fúnebre, mas falhava. Tinha ao lado dela um criado-mudo com um jarro de flores vazio, no lado oposto, próximo à porta por onde eu entrava um sofá baixo, e outro criado-mudo, porém, este estava vazio. Haviam maquinas pelo quarto, mas estavam todas desligadas.
Ela sorriu pra mim. Instantaneamente retribui o sorriso evitando olhar para suas mãos pousadas na barriga grande. Estaria ela beirando os nove meses. Tal pensamento me assustou. Restava muito pouco tempo.
– Está tudo bem? – Perguntei, na verdade, apenas por hábito. Obviamente não estava, mas me parecia deseducado não fazer tal pergunta.
Ela aquiesceu com a cabeça. Notei o cansaço em sua face. Haviam olheiras profundas, sua pele não tinha cor, e seus lábios estavam rachados. Seus olhos pareciam estar em carne viva, seu cabelo minguara, e seus dedos estavam finos.
– Vim te visitar – disse torcendo para ela não dizer que não era horário de visitas.
Então ela não o fez, somente levantou o olhar e comentou:
– Que bom. – Um sorriso brotou, quase que instantaneamente. – Este lugar ás vezes se parece vazio. Receber visitas é bom. – Fui cativado pelo seu sorriso, logo sorri. Mas não pude deixar de notar que ela dissera visitas, no plural.
– Eu estive ontem conversando com Tiago, – disse sorrateiramente, como quem não quer nada. Ela pareceu feliz, então me senti seguro para continuar.  – Ele me contou sobre… – gaguejei involuntariamente. – Sobre vocês. Então eu vim te ver e dizer… hã, dizer que vocês podem contar comigo. Sou sozinho, mas sou útil – disse num tom irônico. Ela sorriu pra mim. – Sei que as coisas estão sendo difícil, as pessoas aqui em Desdém não costumam ajudar muito, mas eu vou tentar. Na verdade nem sou ninguém, mas isso não…
Então ela me emudeceu com uma única palavra.
– Obrigado.
Dentro dela havia uma explosão, pude notar, pois os lábios sorriam, os olhos lacrimejavam, ela hesitava muito antes de falar, ela abria os lábios, mas logo os fechava, e novamente os abria.
– Ele precisa muito de um amigo – ela disse logo, obviamente se referindo à Tiago. – Esta situação o acertou de repente. Ele sofreu tanto quanto eu.
Dei um sorriso compreensivo, e tomei coragem para me aproximar e sentar-me no sofá branco próximo à cama.  Ela estendeu-me fracamente a mão. Feliz eu estendi a minha e segurei a dela. O sorriso dela era para mim o melhor presente do mundo. Ver aqueles lábios rachados se abrindo num sorriso amarelo causava em mim um êxtase sublime. 
– Eu notei que ele se esforça, que ele gosta mesmo de você. Ele ficou ontem na minha casa, e logo pela manhã o encontrei indo trabalhar.
Vi o sorriso de seu rosto se esvair lentamente.
– Eu tenho medo, medo de estar fazendo-o perder a própria vida…
– Não há o que temer – assegurei-lhe. – Ele a ama, pode ter certeza. Toda Desdém pode ver isso.
Naquele dia, ao sair do hospital, ao voltar para casa, fiz questão de passar na rua da casa de Tiago. Torcia para vê-lo, mesmo que improvavelmente, vê-lo ali e poder nem que seja apenas, dizer um oi.

Mas estava preso, e como sempre devia ter sido, sozinho.
Eu não me conformava, não importavam as circunstância, os fatos. Como aceitar que a menina que me chamava de Principezinho estava morta?
As paredes não o fariam por mim, por isso eu as esmurrava. O chão não o faria por mim, por isso eu caminhava com raiva e com força. Deus não faria isso por mim, por isso eu não orava.
Queria que elas morressem, que as lembranças, no pior caso, morressem junto dela. Já não bastava meu luto? Já não havia perdido repentinamente Raquel? Por que então me tomavam Gabriele?
A decisão então fora tomada, havíamos contado a Heloísa, os médicos estavam cientes, e sobretudo Heloísa e Tiago. Havia um resto de esperança perdido em nossos corações, esperávamos que naquele dia esta esperança viesse se verter em fatos.
Desdém estava fria, como se morresse junto de Heloísa.
A cirurgia seria feita, abririam a barriga de Heloísa, mas não para matar a menina, para salvá-la. Os médicos estavam sendo otimista, talvez por mim, pois acreditavam que aquele um por cento de chance dela viver, que o milagre que eu orei a Deus na noite anterior, seria a chance de vida de Heloísa.
Naquele dia eu encontrei com Tiago no estacionamento. Soturno, tinha os joelhos encolhidos, e os braços estendidos por sobre eles. Olhava vez ou outra pro céu quando um raio ecoava ao longe. Era o som dos raios, o som que denotava seu luto.
Vi em seus olhos, que mesmo aquela esperança vaga que ele tinha no peito assim como eu, estava sendo esmagada pelo clima de Desdém. As nuvens não levaram apenas a luz do dia.
Cheguei por trás e me aproximando me pus de pé ao seu lado.
– Não vai entrar? – Perguntei a ele que só notou minha presença depois que comecei a falar.
– Acho que não. – disse receoso. – ‘Tô com medo.
– Quer que eu fique aqui com você? Pretendia ficar com você lá dentro, mas… – Me calei quando notei que não era um momento para ironias.
Ele levantou o olhar e olhou nos meus olhos. Vi no sorriso que ele esboçou uma resposta positiva à minha ultima pergunta.
– Já falou com ela?
– Sim, – ele me respondeu. – Por isso decidi ficar aqui. – Havia algo oculto naquelas palavras, eu pude perceber. Ia começar a falar quando ele com o olhar perdido entre os poucos carros ali completou sua fala. – Ela me disse adeus. – Foi quando o olhar dele caiu que eu me assentei ali do lado dele, e joguei o braço por sobre o ombro dele.
– Não sei bem o que dizer – eu disse quando o silêncio se instalou. – Mas fica sabendo que apesar de tudo, de tudo mesmo, você pode contar comigo. Sei que as coisas estão difíceis para você. Bem, vi que estava tendo problemas com aquela casa, e bem, se quiser, não sei, pode vir morar comigo. Você e elas. Eu, sei lá, moro sozinho, e…
Ele ergueu as mãos para limpar o rosto, foi quando as lágrimas realmente caíram. Ele tombou pro lado, e eu o segurei num abraço. Fiquei em silêncio, e ele sussurrou umas seis vezes para mim a mesma coisa.
– Obrigado!

Preso ali, já mais calmo, eu vi o sol nascendo lá longe, pela pequena janela no fundo da sala. Muito além, depois do bosque ali atrás, do descampado e dos montes lá longe, o sol apareceu lentamente. A sua luz tênue pousou em mim, no meu rosto rígido, na face onde as lágrimas que outrora rolaram, agora estavam secas.
Ali vendo o sol, lembrei-me de Tiago naquele dia diante o hospital, de como ele disse que ao conversar com Heloísa, haviam escolhido um nome para aquela menina, e que por minha causa, colocariam nela o nome de Gabriele.
Haviam lágrimas em seu rosto naquele dia, e num dejà-vú, haviam lágrimas abundantemente no meu rosto encarcerado.
O choro dura uma noite, mas pela manhã vem a alegria. Era Gabriele quem recitava tal frase. Estaria ela mentindo? Preferia acreditar que não.
De manhã vieram os guardas, e o meu cárcere que antes parecia vazio, agora estava cheio de pessoas vazias.
Meu corpo estava exausto, pesado, como se houvessem amarrada a cada membro um navio. Eu adormeci quando vi os homens fardados entrando. Tinha esperanças de que ao menos enquanto dormia o meu luto se afastasse.
Mas ele me impedia de dormir, de quando em quando eu abria os olhos e via lá longe os guardas se movendo, alguns conversavam, ouvia as vezes partes de conversas perdidas chegando até a mim, até que meu corpo cedesse e o sono me dominasse.
Fui desperto a noite, quando um guarda abria minha cela. Suas chaves tilintavam tanto que me soavam num sonho ao qual eu não me lembro mais, como um velho despertador.
Havia atrás dele uma garota, ainda entorpecido pelo sono não a reconheci, mas logo seu rosto me foi visível, quando um guarda me tomou pelo braço com força e me arrastou cela afora.
A garota tinha feições doces, e tinha no colo uma criança que ainda persistia não se rendendo ao sono.
Eu não disse nada, só me deixei ser conduzido para fora. 
Logo me puseram sentado num banco o qual a garota logo se assentou comigo, ajeitando a criança em seu colo. A menina tinha olhos cansados, mas me fitava intensamente.
Em silêncio, ficamos por cerca de cinco minutos. Olhávamos para a parede diante de nós quando um guarda veio me chamar, e me levar para uma sala reservada.
O sono me consumia, havia uma mesa, cadeiras, um homem sentado, e uma garrafa de café no fim da sala.
Quando o guarda me soltou fui até a garrafa de café, peguei um dos pequenos copos descartáveis e enchendo-o de café fervente, tomei.
Não vi quem era o homem, havia em sua farda seu nome e sua função, mas ignorei, o sono que aos poucos se esvaía não me permitiu.
Ele me estendeu algumas folhas, não dizia nada, assim como todos ali, parecia estar mudo. De pouco em pouco, ele analisava as folhas e me estendia para assinar.
Assinei o mais rápido que pude. A caligrafia torta preenchia em segundos o espaço em que ele me indicava. Quanto mais rápido, pensei, mais cedo eu estaria longe dali.
Ele logo me liberou, e com o corpo ainda cansado, cambaleei para fora dali.
Quando passei por um guarda, um desejo interno queria que eu levantasse o dedo do meio e apontasse para ele, porém a minha parte ainda sã já havia despertado.
Ignorei e segui para fora dali.
Quando passei pela sala de espera, o beco estreito onde haviam me deixado com aquela garota por sobre um banco desconfortável, a mesma garota me seguiu.
Quando vi que ela se levantou e vinha em minha direção, me virei a ele e lancei a pergunta.
– Quem é você? – Minha voz falhava, uma rouquidão havia se apossado de minha garganta. Tossi.
– Geórgia – ela disse como se o nome devesse me soar familiar.
Dei-lhe as costas e comecei a caminhar. Mas em contradição ela se fez insistente, e mesmo com a criança no colo me seguiu.
– É… – começou a falar, parecia retraída por alguma coisa. Minha aparência não era das melhores. Tinha as mãos machucadas, e os olhos fundos. – É que preciso falar com você. Talvez eu esteja ficando louca, mas eu preciso da sua ajuda.
– Não vejo em como lhe posso ser útil. – disse o mais educado possível e lhe dei mais uma vez as costas. Estava louco para deixar aquele lugar, e ela parecia, na mesma forma que eu queria sair, disposta a me atrasar.
– Por favor. – ela pediu.
Eu não queria a presença daquela menina, queria ir pra casa e ver como estava Tiago. Queria poder tomar um banho frio e simplesmente dormir.
– Diga-me logo o que quer. – depois de um tempo vi que havia gritado, me arrependi, eu não era assim. O que estava acontecendo comigo?
– Primeiramente, me desculpa. – ela disse se sentindo culpada pelo meu grito.
– Não. Eu é quem me desculpo. Sinceramente, só estou com alguns problemas.
– Você a perdeu né? – instantaneamente olhei para a criança em seus braços. O que sabia ela sobre perdas?
– Desculpa, eu preciso ir embora.
– Espera, – ela gritou quando eu comecei a apertar o passo. – Por favor, – ela sussurrou apenas, mas pude ouvir quando saímos da delegacia e adentramos na noite silenciosa de Desdém. – Eu preciso da sua ajuda. Você é minha última esperança.
Não sabia se devia parar e ajuda-la. Eu era o consolador, era apenas esse o meu papel.
– Então diga o que quer.
– Eu, eu… – ela tinha medo de pedir, era óbvio. – Eu preciso ir onde encontraram-na… – ela deixou o fim da frase vazio. No fundo ela temia dizer seu nome.
– Quem? – Perguntei calmamente.
– Raquel.
Fiquei em silêncio, ela respeitou esse meu momento.
Não! Eu queria gritar para a garota. Eu não podia voltar lá, não podia mesmo. Já não me bastava a dor pulsante de perder Gabriele, teria que recordar a dor que relutante me deixara, a dor da perda de Raquel?
– Eu não posso. Desculpa.
Eu não sabia o que se passava na cabeça dela, nem me importava, só lhe dei as costas.
Havia dado cinco passos quando a voz da criança me alcançou.
– Mas ele tem que nos ajudar. Gege, vai atrás dele. Por Favor. – Então uma voz cortante de choro saiu dos lábios dela. – Por Favor Gege, eu tô com medo.
Eu não pude deixa-las, involuntariamente eu tive que me virar e dizer algo a elas.
– Venham comigo.
E elas me seguiram, como sombras, ambas em silencio, um silêncio cortante, um silêncio intenso.
Houve momentos em que me virava para trás e olhava para elas, Geórgia sorria, apenas por gratidão.
Quando nos dispomos diante da minha casa, as luzes acesas me fizeram cogitar abandoná-las, mas não o fiz. Eu queria ir pra dentro, e no meu quarto poder chorar, poder andar pela casa com o livro do principezinho nas mãos até chegar ao quarto dela. O rosa zombaria do meu luto, mas meus olhos só darão atenção a ausência dela.
Ao invés de deixa-las, vendo que Geórgia estava cansada carregando a menininha, fiz menção de pegá-la para que Geórgia descansasse um pouco. Com o ato perguntei-lhe seu nome, e a menina, agora sorridente me respondeu Julie.
Dali, do outro lado da rua, distante até mesmo da minha casa, olhávamos para o bosque que tomava os montes depois da rua. Separavam-nos apenas alguns metros de asfalto gasto, uma casa, uma cerca, e as colinas, a funesta colina.
Julie adormeceu recostada em meu ombro, de tempo em tempo eu acariciava seus cabelos e ela grunhia e se alinhava em meu peito. Geórgia se limitava a um sorriso.
– Então? – Perguntei tentando criar ali um começo de uma conversa. – O que procuras?
– Eu… Eu… – ela parecia tão incerta quanto eu.
– Não sabe? – completei por ela. – Legal, – menti. Aquilo nem de longe era legal, era loucura. – É logo ali. – disse apontando pro alto da menor colina com o braço que não segurava Julie.
Aquele lugar era lindo, mesmo sendo cena de um assassinato. As colinas difusas, incertas, onde no sopé, por uma fenda crescia uma gigantesca árvore. Mesmo sob a luz da lua, pude ver as flores amarelas na árvore. Ela amava amarelo.
Desviei o olhar com o último pensamento.
– Foi ali. – eu disse parando no limite das árvores, onde o bosque tinha início, era até onde eu me limitava ir.
Ela segurou meu braço com uma mão, bem suavemente, e com o olhar deu-me um já adiantado obrigado.
– Geórgia! – Chamei num grito baixo. Havia o ensurdecedor barulho dos insetos noturnos. – Agora eu é quem estou com medo. – Ela fingiu não me ouvir. – Talvez não tenha nada ai. As vezes as coisas simplesmente acontecem. Geórgia! Foi só um incidente isolado, um acaso.
– É aqui? – Ela se virou e perguntou, como se até então eu nada tivesse dito. – Parece normal demais.
– Sim, é aqui. – Respondi. – Talvez não haja nada aqui, e isso seja loucura. Às vezes acidentes acontecem. Pessoas morrem, Geórgia. Talvez devamos aceitar. – Queria eu poder acatar os conselhos que minha própria voz dava. – Se tentarmos esquecer, quem sabe tudo não fique bem? Enfim, você, sei lá, seja feliz com sua nova família, e eu me conforme em minha perda.
Ela meditava no que eu falava, pela primeira vez tive certeza que ela me ouvira. Mas não foi o suficiente para pará-la.
Ela continuou buscando por algo, mexia nas pedras, agitava a terra seca com os pés. Seu vulto era como um fantasma no meio das árvores.
– Ela está acordando. – menti na esperança de com isso ela desistir e ir pra casa.
– Gabriel! – o grito dela me partiu ao meio. Ouvi o som de terra, de folhas, e do corpo dela caindo. Mas não havia para onde cair, o terreno era suficientemente plano. Foi quando notei a cratera se formando no chão.
Com medo recuei alguns passos com Julie no colo. As árvores tombavam, e eu as via caindo em cima de nós.
– Geórgia! Geórgia! – Gritei. Então, assim como começara, repentinamente cessou. As árvores se mantiveram de pé, enquanto as que caíram jaziam no chão. Havia uma cratera funda, talvez no tamanho de um cômodo de uma casa.
Até onde minha vista alcançava, o chão se abria diante de Geórgia, que lá no fundo jazia caída, como uma caverna. Somente ela viu, não pude distinguir o que era na escuridão da noite.
– Eu estou bem! – Ela gritou lá de baixo. Sua voz chegou até mim fraca, tamanha era a profundidade daquele buraco. – Bem vindo à Toca do Coelho. – O tom de sua voz era feliz, havia certo orgulho mascarando o medo. – Hei, Gabriel! Leve Julie daqui, traga cordas, e lanternas. Se possível ajuda, mas somente alguém de confiança. Acho que vamos para Wonderland.
Não gostava de seu tom irônico, mas no entanto, fui correndo pra casa, com Julie em meu colo, e um medo preso à garganta. Não foi assim que me imaginei indo pra casa, não era assim que pretendia olhar para Tiago.
Mas precisava ser.


domingo, 26 de maio de 2013

16. Georgia - Distante



“Há momentos na vida em que você se sente ninguém, anestesiado da complexa realidade que dança ao redor, sem perceber que naquele momento se vive. Então eles se vão, como pássaros místicos e parecem nunca terem existido.”
A cor do crepúsculo sempre me deixava angustiada e naquela hora, mais que nunca, funcionava como facas sendo enterradas no meu crânio. O modo como os raios alaranjados de sol reluziam nas calçadas desgastadas me remetiam a chamas, e chamas queimavam na minha mente me mostrandocrianças morrendo.
Tudo que desejei naquele momento é que nada daquilo estivesse realmente acontecido.
Se Anne nunca tivesse morrido, por exemplo, seria muito bom. Eu a amava. Ela era a mãe que eu havia conhecido. Se eu não tivesse tido uma mãe biológica que me abandonou na porta dum orfanato qualquer na noite em que eu havia nascido, tudo seria diferente. Mas lamentar nunca havia ajudado. Não havia como resolver nada naquela hora.
Quase imperceptivelmente deslizei para o chão próximo a janela e me abracei, envolvendo meus joelhos, tentando me fazer mais forte, me proteger do mundo que não podia ser ignorado, que se impelia através dos muros construídos por mim. Eu tinha uma vaga consciência de que devia ter chorado ou algo similar pela morte do Sr. Margatte ou pelo fato de ter assistido a vida de pelo menos uma dezena de crianças inocentes se esvaindo enquanto elas queimavam – mas eu, de certa forma, não consegui derramar uma lágrima.Talvez a morte de pessoas próximas a mim tivesse finalmente me tornado psicologicamente insensível, como um brinquedo quebrado e defeituoso.
Eu estava naquele momento, mais que nunca, preocupada com o que estava por vir. Acima de tudo, Julie me preocupava. Desde o acidente com o ônibus dos escoteiros ela não comia direito e se recusava a falar com Cláudia – a mulher que se compadecera da nossa situação por algum motivo que eu realmente desconhecia, e nos adotara. Ultimamente, Julie e eu estávamos tendo certa sorte, se ignorarmos as mortes ocasionais que estavam nos traumatizando e arrancando nossa sanidade, é claro.
O silêncio prolongava-se a cada minuto pelos corredores da casa grande em que morávamos agora. Era tudo realmente muito belo, mas luxo nunca foi algo que eu desejei. Como uma criança de orfanato que eu sempre iria ser, eu só queria pessoas que me amassem, mesmo que eu nunca fosse dizer isso a alguém.
Havia uma garota no hospital também. Vitória, a sobrinha de Cláudia. Ela quase havia morrido no lago de Desdém, próximo ao bosque, afogando-se no dia do acidente. Aquela cidade só podia ser amaldiçoada, era a conclusão tola que consegui chegar, e para mim, fazia sentido. Tragédias brotavam de todos os lados e assolavam todos ali.
Eu não podia olhar para qualquer lugar sem perceber um olhar acuado ou então alguém que se lembrasse do dia do acidente em que, desesperadamente, eu me atirei contra o ônibus tentando destravar as portas com minhas próprias mãos, enquanto as unhas sangravam e o metal ia afundando em minhas mãos, rasgando. Felizmente, minha loucura impulsionouos outros e aos poucos todos começaram a despedaçar o ônibus junto a mim, reunindo forças e libertando os garotinhos. Crianças morreram naquela noite. Dez crianças que eram amadas por seus pais.
Eu não vi o luto da cidade, e não sei se queria ficar para ver. Julie e eu voltamos para o orfanato e ficamos lá por cinco dias. Cinco dias em que nada se passou na minha cabeça. Realmente nada. Eu quis, naqueles dias, apenas esquecer que alguma vez tinha saído das portas do orfanato. Quis esquecer Anne e o Sr. Margatte e acostumar-me a minha situação. Era como eu estivesse presa àquele lugar. Não importasse aonde eu fosse, o quanto eu vivesse, eu estava acorrentada para sempre ali.
Foi quando Cláudia apareceu e disse que nos daria um lar. Que ela estava lá quando tudo aconteceu e que, se eu desejasse, ela tentaria amenizar tudo aquilo que minha irmã e eu estávamos vivendo. Eu não sei exatamente o porquê, mas eu confiei nela. Eu desejei mais que nunca que ela fosse minha mãe e que estivesse voltando para me buscar. Eu quis beijar aquela estranha e me sentir segura, mas não fiz nada disso.
Desde então eu estava ali e tudo ali era solidão. A mudança, que havia acabado de acontecer, fez Julie se fechar até para mim. Não havia tevê e mesmo que houvesse isso não me ajudaria. Nem mesmo os desconhecidos da escola eu estava vendo.
Eu precisava desabafar com alguém. É que minha cabeça estava simplesmente enlouquecendo. Precisava encontrar alguém, tentar fazer as imagens que me atormentavam e se empurravam diante dos meus olhos, sumirem. Por isso eu destranquei a porta da frente e comecei a andar sem um destino certo. Eu procurava alguém no meio da multidão invisível, só não sabia a quem.
Havia uma praça pequena no centro da cidade, mal iluminada e com verde sobrando, com balanços e escorregadores para as crianças.
Duas senhoras conversavam sentadas no que parecia ser o banco mais central e antigo da praça, debaixo de uma árvore de com cascos negros e folhas rosas e amarelas. Os últimos raios fracos atravessavam as folhas farfalhando e isso me angustiou mais ainda. Minha vida não era algo agradável de se viver.
A intimidade com que falavam era tão grande que me resignei de interrompê-las. Talvez se conhecessem desde criança, tivessem crescido juntas ali e seu vínculo fosse maior que qualquer laço de sangue. De repente me senti uma estranha no meio delas. Eu estava pronta para sair dali quando uma delas falou mais alto, me convidando a se aproximar.
– O que faz sozinha perambulando pelas ruas da cidade, mocinha? Não vai demorar a escurecer e, se não percebeu ainda, a cidade não é um bom lugar para um passeio a noite – ela se interrompeu, tentando se impedir de falar alguma coisa. Então continuou – Onde estão seus pais?
Eu gaguejei algo e senti um ímpeto de xingá-la como os meninos mais velhos faziam às voluntarias do orfanato, por intrometer-se em algo intimo demais, mas aquela não era eu. Eu não era assim.
Alicia! – a outra a repreendeu depois de me encarar por certo tempo, reconhecimento surgindo na sua expressão – ela é a menina Georgia, que veio da capital... diga criança, aconteceu alguma coisa? – então, foi a vez dela se interromper, provavelmente lembrando-se do Sr. Magatte sendo morto, a quem ela devia conhecer mais que eu.
Alicia a encarou, com um misto de cansaço e divertimento.
– Dora, você e suas distrações.
– Eu preciso de ajuda – disse antes que pudesse me deter. Meu estômago revirou– Algo... algo esta errado aqui! – E quando eu disse isso, a certeza que havia em minhas palavras me atingiu.
Senti o nó forte desamarrando-se na minha garganta ao mesmo tempo em que o pânico era injetado por todo meu corpo, fluindo como sangue nas veias. Os pelos da minha nuca se eriçaram e de repente eu não estava mais só ali. Não de uma forma boa. Como se alguém me encarasse e eu não o pudesse vê-lo. Como uma faca invisível que pressiona sua pele, mas não se pode vê-la, em nem senti-la, uma vez que ela está em toda parte.
Minha cabeça estava trabalhando descontroladamente e imagens desconexas começaram a surgir: uma zebra tentando livrar-se da mordida do leão, hienas matando o filhote de leopardo. Meus sentidos estavam a mil.
Alicia estava olhando para mim quando me voltei para ela. Seu semblante estava triste.
– Sim, criança. Você... precisa ir embora. Aqui não é seguro.
Pouco se via da luz do sol, e rajadas fortes de vento machucavam o rosto. A imagem de Julie surgiu na minha mente. Eu havia a deixado só. E agora sabia que ali não era um bom lugar para se viver. Coisas aconteciam e pessoas perdiam suas vidas naquele lugar. Eu precisava estar com ela. Já estava me voltando para o caminho de volta a Julie, quando Alicia continuou:
– Primeiro aconteceu com Gabriel, o jovem da lanchonete... ele esta preso agora. Talvez amanhã ele saia da delegacia. Sempre foi um bom garoto, o Gabriel. Nada esta acontecendo por acaso. Entenda, todos nos conhecemos nesse buraco de coelho. E podemos sentir quando tudo foge do controle, mesmo quando o que podemos fazer é apenas sentar e fingir que nada esta acontecendo. – ela hesitou e arfou. – Ele pode ajudá-la criança? Gabriel?
– Eu não posso saber – balbuciei, desesperada por Julie.
– Não! – Alicia interrompeu bruscamente recordando-se de algo – Há Victória também. Ela quase se afogou. Algo começou ali – disse como se fosse algo extremamente simples.
– O acidente... Ele foi um acidente mesmo, certo? – Estava confusa, tentando entender algo ali – O Sr. Magatte, algo o matou? É isso que estão tentando dizer? As crianças escoteiras no ônibus...
– Eu não posso saber, criança. Mas talvez alguém saiba. Os outros. Os que estão sofrendo como você.
– Talvez ir embora não seja a melhor opção, menina Georgia – Dora disse, mesmo que em seu rosto essa não fosse a verdade que ela queria me dizer – Veja, para onde iria? Você e sua irmã, Julie não é mesmo? Talvez isso acabe. A onda de má sorte.
– Você sabe que esta além disso, Dora – Alicia repreendeu carrancuda – Onda de má sorte? Francamente! Qualquer lugar será melhor para ela e sua irmã.
– Mas e se o quê esta havendo aqui resolver acompanhá-la? Ela terá que enfrentar sozinha. Pense Alicia, use sua cabeça dura ao menos uma vez.
– Eu preciso de ajuda – suspirei derrotada, meus olhos ardendo.
Alicia riu, enquanto Dora me olhava com compaixão – Você nos pede auxilio quando é unicamente você que pode se ajudar criança. Somos velhas e a vitalidade esta indo embora. Ajude-se. Sei que sempre conquistou por si mesma, não é verdade?
O céu escuro da noite se iluminou com um relâmpago luminoso pouco antes de o trovão ensurdecedor explodir acima de nós. Uma gota d’água molhou o tecido fino da minha blusa, trazendo uma garoa fina sobre a praça.
Impulsionei-me em direção à casa de Cláudia, correndo o mais rápido que podia, sem olhar para trás. Precisava que Julie estivesse em segurança. Eu era uma maldita irresponsável por tê-la deixado ali só. Se algo acontecesse a ela eu não poderia me perdoar jamais. De repente, minha vida dependia do quanto eu podia correr.
Enquanto corria de volta para casa, a adrenalina pulsando através das veias, o peito dolorido pelas batidas fortes do coração, eu me vi perdendo Julie e só cogitar isso era doloroso demais. Mas se eu não fosse forte o bastante para enfrentar qualquer coisa que estivesse acontecendo eu iria perdê-la, era o quê se repetia dentro da minha cabeça como uma faixa de CD arranhado. E eu enfrentaria tudo por Julie.
 Ficar em Desdém talvez não fosse o melhor caminho para continuar viva, mas afinal, pra onde iriamos de qualquer forma, como Dora havia falado?
Minhas pernas estavam fraquejando, e eu estava longe da casa ainda. Eu tinha andado muito para chegar à praça, sem ter me dado conta disso.
Então eu a vi, quando um relâmpago iluminou o céu mais uma vez aquela noite.
Julie estava encolhida, encostada no tronco de uma árvore. Estava encharcada e assustada. Seus olhinhos marrons me fitaram e ela finalmente chorou quando percebeu que eu estava realmente ali. Corri e para abraçá-la e quando a tive em meus braços o alivio fez tudo parecer insignificante.
– Há algo na casa, Gege – ela sussurrou apavorada – eu soube que havia, chamei por você, mas você não estava lá. Então sai de lá, mesmo sem você, porque estava com medo e... me perdoe.
–Shiii– eu a interrompi– me perdoe você. Eu a deixei só. Onde estão Claudia e Victória?
– Elas não estão lá. Eu gritei por elas.
No instante seguinte eu estava caminhando, Julie abraçando meu pescoço com força. A chuva estava mais forte agora, as ruas escuras e desertas.
– Você está bem? – sussurrei, os lábios encostados em seu ouvido, porque agora tudo parecia me vigiar na escuridão.
– Estou – ela era Julie afinal, por mais que fosse ruim admitir ela também devia ter aprendido a conviver com o desagradável, contando com as perdas tristes que estávamos tendo. – Aonde vamos Geórgia?
– Visitar um amigo. Você disse que Vitória não está lá. Então só me resta alguém. Aconchegue-se melhor. Pode dormir se quiser.
Estávamo-nos nas colinas de Desdém. Gabriel tentou conversar comigo depois que saímos da delegacia, mas eu simplesmente não pude. Estava exausta e sem fôlego para respondê-lo. Ele desistiu depois de um tempo.
Julie estava em seu colo agora, dormindo profundamente, sob a luz intensada lua, enquanto os pedaços de galhos molhados eram esmagados debaixo de nossos pés.
– Acho que chegamos – Gabriel disse incerto – e Julie esta acordando.
– É aqui? Parece normal demais.
– Sim, foi aqui que aconteceu – Ele parecia nauseado – Talvez, talvez não haja nada aqui e isso seja loucura. Acidentes acontecem. Pessoas morrem Georgia. Talvez devamos aceitar. Se tentarmos esquecer quem sabe tudo fique bem. Enfim você seja feliz com sua nova família e eu me conforme em minha perda.
Eu quis acreditar em Gabriel. Suas palavras, mesmo inseguras, eram tudo o que eu queria que fosse verdade. Mas ficou difícil, quase impossível de acreditar com o que aconteceu em seguida.
Na penumbra da noite, eu não podia enxergar direito e pisei em falso num pedaço de rocha no chão, caindo. O terreno inclinado me faz rolar ladeira abaixo, ganhando arranhões e pequenos rasgos pelos braços e pernas. Então atingi algo sólido, mas frágil como madeira fina, que rompeu com a força do impacto, depois de ter me machucado muito, rolando pelo chão. Cai num buraco fundo e senti os joelhos queimarem de dor quando meu corpo forçou sobre eles. Pude escutar os gritos de Gabriel e de Julie, que estava desesperada, acima de mim, tentando me encontrar em meio à escuridão.
“Estou bem.” Eu tentei responder, mas minha voz ficou presa na garganta como num sonho cruel. Eu levantei e me forcei a olhar ao redor. E o que encontrei foi um mundo subterrâneo. Uma imensidão infinita de túneis e mais túneis escuros que, provavelmente, estendiam-se como raiz de fungo, contagiando e se desenrolando por toda parte inferior de Desdém.