domingo, 26 de maio de 2013

16. Georgia - Distante



“Há momentos na vida em que você se sente ninguém, anestesiado da complexa realidade que dança ao redor, sem perceber que naquele momento se vive. Então eles se vão, como pássaros místicos e parecem nunca terem existido.”
A cor do crepúsculo sempre me deixava angustiada e naquela hora, mais que nunca, funcionava como facas sendo enterradas no meu crânio. O modo como os raios alaranjados de sol reluziam nas calçadas desgastadas me remetiam a chamas, e chamas queimavam na minha mente me mostrandocrianças morrendo.
Tudo que desejei naquele momento é que nada daquilo estivesse realmente acontecido.
Se Anne nunca tivesse morrido, por exemplo, seria muito bom. Eu a amava. Ela era a mãe que eu havia conhecido. Se eu não tivesse tido uma mãe biológica que me abandonou na porta dum orfanato qualquer na noite em que eu havia nascido, tudo seria diferente. Mas lamentar nunca havia ajudado. Não havia como resolver nada naquela hora.
Quase imperceptivelmente deslizei para o chão próximo a janela e me abracei, envolvendo meus joelhos, tentando me fazer mais forte, me proteger do mundo que não podia ser ignorado, que se impelia através dos muros construídos por mim. Eu tinha uma vaga consciência de que devia ter chorado ou algo similar pela morte do Sr. Margatte ou pelo fato de ter assistido a vida de pelo menos uma dezena de crianças inocentes se esvaindo enquanto elas queimavam – mas eu, de certa forma, não consegui derramar uma lágrima.Talvez a morte de pessoas próximas a mim tivesse finalmente me tornado psicologicamente insensível, como um brinquedo quebrado e defeituoso.
Eu estava naquele momento, mais que nunca, preocupada com o que estava por vir. Acima de tudo, Julie me preocupava. Desde o acidente com o ônibus dos escoteiros ela não comia direito e se recusava a falar com Cláudia – a mulher que se compadecera da nossa situação por algum motivo que eu realmente desconhecia, e nos adotara. Ultimamente, Julie e eu estávamos tendo certa sorte, se ignorarmos as mortes ocasionais que estavam nos traumatizando e arrancando nossa sanidade, é claro.
O silêncio prolongava-se a cada minuto pelos corredores da casa grande em que morávamos agora. Era tudo realmente muito belo, mas luxo nunca foi algo que eu desejei. Como uma criança de orfanato que eu sempre iria ser, eu só queria pessoas que me amassem, mesmo que eu nunca fosse dizer isso a alguém.
Havia uma garota no hospital também. Vitória, a sobrinha de Cláudia. Ela quase havia morrido no lago de Desdém, próximo ao bosque, afogando-se no dia do acidente. Aquela cidade só podia ser amaldiçoada, era a conclusão tola que consegui chegar, e para mim, fazia sentido. Tragédias brotavam de todos os lados e assolavam todos ali.
Eu não podia olhar para qualquer lugar sem perceber um olhar acuado ou então alguém que se lembrasse do dia do acidente em que, desesperadamente, eu me atirei contra o ônibus tentando destravar as portas com minhas próprias mãos, enquanto as unhas sangravam e o metal ia afundando em minhas mãos, rasgando. Felizmente, minha loucura impulsionouos outros e aos poucos todos começaram a despedaçar o ônibus junto a mim, reunindo forças e libertando os garotinhos. Crianças morreram naquela noite. Dez crianças que eram amadas por seus pais.
Eu não vi o luto da cidade, e não sei se queria ficar para ver. Julie e eu voltamos para o orfanato e ficamos lá por cinco dias. Cinco dias em que nada se passou na minha cabeça. Realmente nada. Eu quis, naqueles dias, apenas esquecer que alguma vez tinha saído das portas do orfanato. Quis esquecer Anne e o Sr. Margatte e acostumar-me a minha situação. Era como eu estivesse presa àquele lugar. Não importasse aonde eu fosse, o quanto eu vivesse, eu estava acorrentada para sempre ali.
Foi quando Cláudia apareceu e disse que nos daria um lar. Que ela estava lá quando tudo aconteceu e que, se eu desejasse, ela tentaria amenizar tudo aquilo que minha irmã e eu estávamos vivendo. Eu não sei exatamente o porquê, mas eu confiei nela. Eu desejei mais que nunca que ela fosse minha mãe e que estivesse voltando para me buscar. Eu quis beijar aquela estranha e me sentir segura, mas não fiz nada disso.
Desde então eu estava ali e tudo ali era solidão. A mudança, que havia acabado de acontecer, fez Julie se fechar até para mim. Não havia tevê e mesmo que houvesse isso não me ajudaria. Nem mesmo os desconhecidos da escola eu estava vendo.
Eu precisava desabafar com alguém. É que minha cabeça estava simplesmente enlouquecendo. Precisava encontrar alguém, tentar fazer as imagens que me atormentavam e se empurravam diante dos meus olhos, sumirem. Por isso eu destranquei a porta da frente e comecei a andar sem um destino certo. Eu procurava alguém no meio da multidão invisível, só não sabia a quem.
Havia uma praça pequena no centro da cidade, mal iluminada e com verde sobrando, com balanços e escorregadores para as crianças.
Duas senhoras conversavam sentadas no que parecia ser o banco mais central e antigo da praça, debaixo de uma árvore de com cascos negros e folhas rosas e amarelas. Os últimos raios fracos atravessavam as folhas farfalhando e isso me angustiou mais ainda. Minha vida não era algo agradável de se viver.
A intimidade com que falavam era tão grande que me resignei de interrompê-las. Talvez se conhecessem desde criança, tivessem crescido juntas ali e seu vínculo fosse maior que qualquer laço de sangue. De repente me senti uma estranha no meio delas. Eu estava pronta para sair dali quando uma delas falou mais alto, me convidando a se aproximar.
– O que faz sozinha perambulando pelas ruas da cidade, mocinha? Não vai demorar a escurecer e, se não percebeu ainda, a cidade não é um bom lugar para um passeio a noite – ela se interrompeu, tentando se impedir de falar alguma coisa. Então continuou – Onde estão seus pais?
Eu gaguejei algo e senti um ímpeto de xingá-la como os meninos mais velhos faziam às voluntarias do orfanato, por intrometer-se em algo intimo demais, mas aquela não era eu. Eu não era assim.
Alicia! – a outra a repreendeu depois de me encarar por certo tempo, reconhecimento surgindo na sua expressão – ela é a menina Georgia, que veio da capital... diga criança, aconteceu alguma coisa? – então, foi a vez dela se interromper, provavelmente lembrando-se do Sr. Magatte sendo morto, a quem ela devia conhecer mais que eu.
Alicia a encarou, com um misto de cansaço e divertimento.
– Dora, você e suas distrações.
– Eu preciso de ajuda – disse antes que pudesse me deter. Meu estômago revirou– Algo... algo esta errado aqui! – E quando eu disse isso, a certeza que havia em minhas palavras me atingiu.
Senti o nó forte desamarrando-se na minha garganta ao mesmo tempo em que o pânico era injetado por todo meu corpo, fluindo como sangue nas veias. Os pelos da minha nuca se eriçaram e de repente eu não estava mais só ali. Não de uma forma boa. Como se alguém me encarasse e eu não o pudesse vê-lo. Como uma faca invisível que pressiona sua pele, mas não se pode vê-la, em nem senti-la, uma vez que ela está em toda parte.
Minha cabeça estava trabalhando descontroladamente e imagens desconexas começaram a surgir: uma zebra tentando livrar-se da mordida do leão, hienas matando o filhote de leopardo. Meus sentidos estavam a mil.
Alicia estava olhando para mim quando me voltei para ela. Seu semblante estava triste.
– Sim, criança. Você... precisa ir embora. Aqui não é seguro.
Pouco se via da luz do sol, e rajadas fortes de vento machucavam o rosto. A imagem de Julie surgiu na minha mente. Eu havia a deixado só. E agora sabia que ali não era um bom lugar para se viver. Coisas aconteciam e pessoas perdiam suas vidas naquele lugar. Eu precisava estar com ela. Já estava me voltando para o caminho de volta a Julie, quando Alicia continuou:
– Primeiro aconteceu com Gabriel, o jovem da lanchonete... ele esta preso agora. Talvez amanhã ele saia da delegacia. Sempre foi um bom garoto, o Gabriel. Nada esta acontecendo por acaso. Entenda, todos nos conhecemos nesse buraco de coelho. E podemos sentir quando tudo foge do controle, mesmo quando o que podemos fazer é apenas sentar e fingir que nada esta acontecendo. – ela hesitou e arfou. – Ele pode ajudá-la criança? Gabriel?
– Eu não posso saber – balbuciei, desesperada por Julie.
– Não! – Alicia interrompeu bruscamente recordando-se de algo – Há Victória também. Ela quase se afogou. Algo começou ali – disse como se fosse algo extremamente simples.
– O acidente... Ele foi um acidente mesmo, certo? – Estava confusa, tentando entender algo ali – O Sr. Magatte, algo o matou? É isso que estão tentando dizer? As crianças escoteiras no ônibus...
– Eu não posso saber, criança. Mas talvez alguém saiba. Os outros. Os que estão sofrendo como você.
– Talvez ir embora não seja a melhor opção, menina Georgia – Dora disse, mesmo que em seu rosto essa não fosse a verdade que ela queria me dizer – Veja, para onde iria? Você e sua irmã, Julie não é mesmo? Talvez isso acabe. A onda de má sorte.
– Você sabe que esta além disso, Dora – Alicia repreendeu carrancuda – Onda de má sorte? Francamente! Qualquer lugar será melhor para ela e sua irmã.
– Mas e se o quê esta havendo aqui resolver acompanhá-la? Ela terá que enfrentar sozinha. Pense Alicia, use sua cabeça dura ao menos uma vez.
– Eu preciso de ajuda – suspirei derrotada, meus olhos ardendo.
Alicia riu, enquanto Dora me olhava com compaixão – Você nos pede auxilio quando é unicamente você que pode se ajudar criança. Somos velhas e a vitalidade esta indo embora. Ajude-se. Sei que sempre conquistou por si mesma, não é verdade?
O céu escuro da noite se iluminou com um relâmpago luminoso pouco antes de o trovão ensurdecedor explodir acima de nós. Uma gota d’água molhou o tecido fino da minha blusa, trazendo uma garoa fina sobre a praça.
Impulsionei-me em direção à casa de Cláudia, correndo o mais rápido que podia, sem olhar para trás. Precisava que Julie estivesse em segurança. Eu era uma maldita irresponsável por tê-la deixado ali só. Se algo acontecesse a ela eu não poderia me perdoar jamais. De repente, minha vida dependia do quanto eu podia correr.
Enquanto corria de volta para casa, a adrenalina pulsando através das veias, o peito dolorido pelas batidas fortes do coração, eu me vi perdendo Julie e só cogitar isso era doloroso demais. Mas se eu não fosse forte o bastante para enfrentar qualquer coisa que estivesse acontecendo eu iria perdê-la, era o quê se repetia dentro da minha cabeça como uma faixa de CD arranhado. E eu enfrentaria tudo por Julie.
 Ficar em Desdém talvez não fosse o melhor caminho para continuar viva, mas afinal, pra onde iriamos de qualquer forma, como Dora havia falado?
Minhas pernas estavam fraquejando, e eu estava longe da casa ainda. Eu tinha andado muito para chegar à praça, sem ter me dado conta disso.
Então eu a vi, quando um relâmpago iluminou o céu mais uma vez aquela noite.
Julie estava encolhida, encostada no tronco de uma árvore. Estava encharcada e assustada. Seus olhinhos marrons me fitaram e ela finalmente chorou quando percebeu que eu estava realmente ali. Corri e para abraçá-la e quando a tive em meus braços o alivio fez tudo parecer insignificante.
– Há algo na casa, Gege – ela sussurrou apavorada – eu soube que havia, chamei por você, mas você não estava lá. Então sai de lá, mesmo sem você, porque estava com medo e... me perdoe.
–Shiii– eu a interrompi– me perdoe você. Eu a deixei só. Onde estão Claudia e Victória?
– Elas não estão lá. Eu gritei por elas.
No instante seguinte eu estava caminhando, Julie abraçando meu pescoço com força. A chuva estava mais forte agora, as ruas escuras e desertas.
– Você está bem? – sussurrei, os lábios encostados em seu ouvido, porque agora tudo parecia me vigiar na escuridão.
– Estou – ela era Julie afinal, por mais que fosse ruim admitir ela também devia ter aprendido a conviver com o desagradável, contando com as perdas tristes que estávamos tendo. – Aonde vamos Geórgia?
– Visitar um amigo. Você disse que Vitória não está lá. Então só me resta alguém. Aconchegue-se melhor. Pode dormir se quiser.
Estávamo-nos nas colinas de Desdém. Gabriel tentou conversar comigo depois que saímos da delegacia, mas eu simplesmente não pude. Estava exausta e sem fôlego para respondê-lo. Ele desistiu depois de um tempo.
Julie estava em seu colo agora, dormindo profundamente, sob a luz intensada lua, enquanto os pedaços de galhos molhados eram esmagados debaixo de nossos pés.
– Acho que chegamos – Gabriel disse incerto – e Julie esta acordando.
– É aqui? Parece normal demais.
– Sim, foi aqui que aconteceu – Ele parecia nauseado – Talvez, talvez não haja nada aqui e isso seja loucura. Acidentes acontecem. Pessoas morrem Georgia. Talvez devamos aceitar. Se tentarmos esquecer quem sabe tudo fique bem. Enfim você seja feliz com sua nova família e eu me conforme em minha perda.
Eu quis acreditar em Gabriel. Suas palavras, mesmo inseguras, eram tudo o que eu queria que fosse verdade. Mas ficou difícil, quase impossível de acreditar com o que aconteceu em seguida.
Na penumbra da noite, eu não podia enxergar direito e pisei em falso num pedaço de rocha no chão, caindo. O terreno inclinado me faz rolar ladeira abaixo, ganhando arranhões e pequenos rasgos pelos braços e pernas. Então atingi algo sólido, mas frágil como madeira fina, que rompeu com a força do impacto, depois de ter me machucado muito, rolando pelo chão. Cai num buraco fundo e senti os joelhos queimarem de dor quando meu corpo forçou sobre eles. Pude escutar os gritos de Gabriel e de Julie, que estava desesperada, acima de mim, tentando me encontrar em meio à escuridão.
“Estou bem.” Eu tentei responder, mas minha voz ficou presa na garganta como num sonho cruel. Eu levantei e me forcei a olhar ao redor. E o que encontrei foi um mundo subterrâneo. Uma imensidão infinita de túneis e mais túneis escuros que, provavelmente, estendiam-se como raiz de fungo, contagiando e se desenrolando por toda parte inferior de Desdém.



Nenhum comentário:

Postar um comentário